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1. Democracia e cidade

     Só encontramos se soubermos o que procuramos. Um princípio epistemológico elementar. Ou talvez não tanto. Bachelard diz-nos que investigar é procurar o que está escondido, mas enquanto o procuramos dificilmente podemos explicitar de que se trata. Para nós, que nos ocupamos da cidade, o que nela nos atrai especialmente é que constitua o lugar da liberdade e da aventura possíveis de cada um, a multiplicação dos encontros imprevistos, dos acasos insuspeitos. A cidade pode surpreender-nos em cada esquina (Breton) e ali queremos viver “per si hi ha una gesta” (Salvat Papasseit). A cidade é ao mesmo tempo vivência pessoal e acção colectiva. As suas praças e ruas e os seus edifícios emblemáticos são o lugar onde a história se faz: o Muro de Berlim, a Praça Venceslau de Praga, o Zócalo mexicano, a Praça Tiananmen... e se olharmos para um passado mais distante: o palácio de São Petersburgo, a Escadaria Potemkin ou a Bastilha e o salão do Jeu de Paume junto à Concorde da Paris revolucionária. Foi precisamente neste salão que se proclamaram Les droits de l’homme: “Os homens nascem e desenvolvem-se livres e iguais.” O mito originário da cidade é a Torre de Babel, povos diferentes mas iguais, juntos, construindo a sua “cidade” como desafio ao poder dos deuses, como afirmação de independência. Cidadãos são os que convivem, livres e iguais, num território dotado de identidade e que se auto-governa1.
     A uma pergunta feita na televisão, imprevista e em directo, sobre como definiria o “socialismo democrático”, Mitterrand respondeu sucintamente: “É a justiça, é a cidade.” A cidade é, pois, uma metáfora da democracia, na sua dupla dimensão individual e social, lírica e épica. A cidade é calorosa e faz o contraponto com a democracia, que é frígida – disse o liberal Dahrendorf num interessante diálogo com Furet e Geremek2. A cidade, como a democracia, tem por vocação maximizar a liberdade individual transformando-a num objectivo de vida colectiva que minimize as desigualdades. A cidade humaniza o ideal democrático abstracto, introduz o prazer dos sentidos na racionalidade sistemática e os desejos íntimos de cada um modulam os projectos colectivos. Na cidade o herói é a personagem de Chandler – duro e terno: “Se não fosse duro, senhora, não estaria vivo, e se não pudesse ser terno não o mereceria estar.”
     A cidade como metáfora da democracia interessa-nos especialmente, pois permite enfatizar algo que é próprio da primeira e necessário à segunda: a dimensão sentimental e sensual, cordial e amorosa, individualizadora e cooperativa, plural e homogeneizadora, protectora e segura, incerta e surpreendente, transgressora e misteriosa. E também porque vivemos numa época em que não é por acaso que, simultaneamente, cidade e democracia se estão a perder, como se se dissolvessem no espaço público, no sentido físico e político. O desapego dos cidadãos face à política institucional e aos partidos políticos é crescente e se, por um lado, é em parte um efeito da globalização e da crise do Estado-Nação, por outro, expressa-se e, em parte, acentua-se, nas novas formas extensivas do desenvolvimento urbano, socialmente segregador, ambientalmente insustentável e politicamente opaco. Se a cidade constitui o espaço produtor da cidadania e gerador da inovação, constitui igualmente o húmus em que a democracia vive, progride e responde aos novos desafios. Sem cidade, lugar que maximiza intercâmbios, a democracia perde a força vocacionada para criar futuros possíveis e promover acções presentes. A cidade, simultaneamente, passado, presente e futuro da democracia. E não ter um projecto e uma acção constante de construção da cidade, que se faz e desfaz a cada dia, é aceitar a degradação lenta mas contínua da democracia.


2. A dissolução paralela da cidade e da democracia


     A revolução urbana que vivemos é uma das principais expressões da nossa época. Não nos alongaremos sobre uma temática amplamente tratada, inclusive pelo autor deste artigo (v. nota 1). As novas áreas metropolitanas questionam a nossa ideia de cidade: são vastas regiões de urbanização descontínua, fragmentada em alguns casos, difusa noutros, sem limites precisos, com escassos referentes físicos e simbólicos que marquem o território, espaços públicos pobres e submetidos a potentes dinâmicas de privatização, caracterizadas pela segregação social e pela especialização funcional em grande escala e por centralidades “gentrificadas” (classistas) ou “museificadas”, convertidas em parques temáticos ou estratificadas pelas ofertas de consumo. Esta cidade, ou “não-cidade” (como diria Marc Augé, o inventor do “não-lugar”), é, simultaneamente, expressão e reprodução de uma sociedade ao mesmo tempo heterogénea e compartimentada (ou “guetizada”), isto é, deficientemente coesa. As promessas resultantes da revolução urbana, especialmente a maximização da autonomia individual, estão ao alcance apenas de uma minoria. A multiplicação das ofertas de trabalho, residência, cultura, formação, ócio, etc., requerem um relativo alto nível de rendimentos e de informação, assim como dispor de um efectivo direito à mobilidade e à inserção em redes telemáticas. As relações sociais, para uma minoria alargaram-se e são menos dependentes do trabalho e da residência, mas para uma maioria empobreceram-se, devido à precariedade do trabalho, ao tempo gasto na mobilidade quotidiana e à exclusão cultural.
     Esta nova sociedade urbana não está estruturada em grandes grupos sociais como os que caracterizavam a sociedade industrial. É uma sociedade individualizada, segmentada, fracturada entre aqueles que temem perder os seus rendimentos, que lhes garantem uma dada posição, os seus medíocres privilégios e vulneráveis seguranças e os que vivem precariamente, ao nível dos seus trabalhos e dos seus direitos, sem outro horizonte vital que não o da incerteza, sem outra garantia que a de não poder alcançar o nível das suas expectativas. É uma sociedade que depende do Estado-Providência, mas, precisamente, este não chega, ou pelo menos não suficientemente, aos que dele mais necessitam. O propósito muito louvável de defender o Estado-Providência como o “nosso Estado de Direito"3 esquece que este programa não garante o “bem-estar”, por insuficiente ou inadaptado às necessidades de hoje, a grande parte dos que mais dele necessitam: os “mileuristas” (os que apenas alcançam os 1000 euros mensais, hoje, o grupo mais numeroso de assalariados em Espanha) e os desocupados, os jovens que não podem aceder à habitação e os imigrantes sem direitos reconhecidos, os fracassados da escola e os excluídos pela fractura digital. E os que vivem no círculo vicioso da marginalização, em urbanizações periféricas ou em bairros degradados, longe de tudo e demasiado perto dos que vivem na mesma situação ou pior que eles.
     Nestes espaços urbanos e nestas sociedades atomizadas a democracia perde-se. Mediante uma gestão municipal correcta, atenta aos seus eleitores, mais reprodutora que inovadora (mais do mesmo), mantém a sua respeitável existência institucional. E por meio da televisão engendra os indispensáveis momentos eleitorais, entre os quais, o único que se pode expressar com um certo conhecimento é o voto negativo. Cumpriu-se a tese de Popper: a democracia serve para destituir governos, não para os eleger. Há uma progressiva dissolução dos partidos políticos em campo, como força social, cultural e política, por falta de enraizamento militante no território, especialmente entre os sectores sociais mais discriminados nuns casos e mais reactivos noutros. E, sobretudo, assiste-se à dissolução do seu discurso. Se existe uma crise da cidade (risco de degeneração e oportunidade de re-criação a uma escala maior), os partidos democráticos deveriam propor-nos no presente um projecto de cidade futura. É inegável que os governos locais da Espanha democrática têm sabido desenvolver políticas positivas na cidade compacta herdada, especialmente de reconstrução dos espaços públicos e de manutenção relativa da mistura social e funcional. Mas as instituições políticas da democracia mostram-se muito mais impotentes, quando não cúmplices, diante dos efeitos perversos da globalização no território e dos agentes que promovem estes vastos espaços urbanizados sem qualidade de cidade. Pelo contrário, mediante políticas sectoriais e de curto prazo acabam por se submeter à lógica segregadora e exclusivista do mercado e contribuem em muitos casos para a dissolução do cidadão. A isto os governantes (direitas e esquerdas confundidas) e grandes empresas acrescentam, em nome da competitividade e do marketing urbano, a ostentação arquitectónica, o neomonumentalismo de exportação, que banaliza a cidade e aliena os cidadãos, visto que, em muitos casos, esta arquitectura de autor parece destinada a provocar sentimentos de expropriação em vez de identificação ou de emoção integradoras.
     Periodicamente, ss cúpulas políticas, declaram que faz falta construir uma governabilidade metropolitana para que a cidade do futuro seja geradora de cidadania. Mas, quando governam, evitam fazê-lo, pois a fragmentação e a sobreposição de organismos actuais parece-lhes, então, ser do agrado da maioria. Só nos propõem projectos de arquitectura institucional sem outra lógica que não a burocrática (ou a pessoal) dos que os defendem. São frequentes os lamentáveis espectáculos que nos oferecem os debates institucionais quando se trata de propor soluções avançadas para a organização do território, a governabilidade metropolitana, a legislação eleitoral, a participação dos cidadãos e a racionalização administrativa. Os interesses partidários acabam por bloquear qualquer avanço inovador, racionalizador e participativo.
     A cultura estadista e partidocrática é comum aos que procedem da tradição social-democrata, bem como aos que aderiram ao liberalismo conservador ou democrata-cristão. Os seus líderes políticos e intelectuais movem-se entre as abstracções do Estado, da economia global e das sondagens de opinião. A cidade de carne e osso, de indivíduos com desejos e necessidades inerentes, que se misturam em cada um deles, e que demandam respostas integradas e próximas é-lhes muito distante. Perto, no melhor dos casos, estão os gestores locais do dia-a-dia, inevitavelmente limitados à única vantagem comparativa que possuem, a proximidade, que não é suficiente para enfrentarem as dinâmicas actuais que reduzem as liberdades urbanas e acrescentam as desigualdades no território.


3. Conflitos territoriais e assimetria política


     Na Europa, tornou-se quase um lugar-comum a ideia de que a contradição própria das nossas sociedades se transferiu do âmbito da empresa para o do território, ou seja, do da contradição capital vs trabalho para o das políticas públicas (por acção ou omissão) vs condições de vida (reprodução social). Contudo, esta contradição surge de maneira confusa em consequência da multiformidade dos objectos ou materiais que a expressam, tão díspares como a habitação e a segurança, o trabalho precário e a imigração, a protecção do meio ambiente ou do património e a mobilidade. Uma confusão que dificulta a construção de projectos simétricos que se possam contrapor.
     A esta assimetria acrescenta-se a que deriva da diversidade de sujeitos, com interesses, por sua vez, contraditórios, que dificilmente são capazes de definir um cenário compartilhado onde se negocie o conflito (só se o conflito se agudizar e em casos pontuais). Denominamos esta conflituosidade por assimétrica quando os actores em confronto não podem definir objectivos negociáveis ou não estão em condições de assumir responsabilidades. Um caso extremo de conflituosidade apresenta-se quando se dá uma revolta “anómica” (por exemplo, os protestos dos “banlieusards” de Paris). E um exemplo de conflituosidade em que nenhuma das partes assume responsabilidades dá-se quando existe uma diversidade confusa de actores com competências concorrentes, como ocorre frequentemente entre os governos estatais e regionais.
     A questão que interessa neste caso não é tanto a complexidade do conflito mas sim a debilidade das políticas públicas perante estes conflitos. Uma debilidade que deriva mais da inconsistência teórica e do laxismo dos valores morais que do carácter das pessoas ou das opções conjunturais dos partidos. Uma debilidade de princípios e de valores que conduz ao oportunismo eleitoral e à gestão rotineira. Vejamos um conjunto de questões conflituais, que se expressam em ambientes territoriais de proximidade. Temas que podem servir como teste para avaliar se a democracia de proximidade é portadora de um projecto de futuro mais democrático ou se é simplesmente uma gestora do presente, com os seus progressos adquiridos e a suas contradições e retrocessos permanentes.


4. A precariedade do trabalho


     A evolução da economia de mercado “naturalizou” a precariedade do trabalho assalariado, a consequente desvalorização do posto de trabalho e do processo aquisitivo da qualificação profissional. As actuais democracias implementaram medidas correctoras dos efeitos mais negativos da precariedade (subsídio de desemprego, programas de formação contínua, duração mínima dos contratos de trabalho, redução da carga horária, etc.), mas não são portadoras de um projecto global que valorize o trabalho e a profissionalização de todas as actividades, como propuseram algumas correntes sindicais (por exemplo, Trentin, ex-secretário geral da CGIL - Confederazione Generale Italiana del Lavoro). Por outro lado, se tivermos em conta a entrada tardia no mercado de trabalho, os quase inevitáveis períodos de desocupação que espreitam grande parte da população activa e a reforma de pessoas quando ainda dispõem de duas ou mais décadas de esperança de vida coloca-se a questão da necessidade de existência de rendimentos mínimos garantidos. Presentemente, as desigualdades e as incertezas caracterizam os actuais sistemas de pensões. A proposta de um valor-base universal é seguramente discutível na sua concepção e de difícil implementação, mas indicia a existência de um problema que requer uma solução global. Estamos conscientes de que esta problemática não é específica do âmbito local, mas é neste que se manifesta, se torna visível. Um alto funcionário francês, Delarue, insuspeito de esquerdismo, disse, há já bastantes anos, que o conflito social próprio da sociedade industrial se tinha transferido da empresa para o território4.


5. A habitação e o solo


     A habitação é um direito básico estabelecido nos textos constitucionais e nas declarações de direitos humanos, mas é somente um princípio orientador das políticas públicas, isto é, trata-se de um “direito programático”, não garantido pelo Estado de “direito”. Hoje converteu-se num dos grandes problemas sociais para amplos sectores da população e ao mesmo tempo uma das principais fontes de benefícios especulativos, tanto do capitalismo financeiro como de um extenso e variegado mundo de proprietários de terrenos, promotores e construtores. A urbanização, a construção de habitação e as obras públicas são seguramente o principal factor de corrupção política e social. Em Espanha, sob governos de esquerda e de direita (certamente estes deram mais facilidades), destruiu-se por igual a paisagem costeira, a urbanização extensiva favoreceu a maior especulação do solo da nossa história, construíram-se centenas de milhares de habitações que não têm comprador ou estão localizadas tão longe dos centros de trabalho e de serviços que geram altos custos sociais e ambientais. A esquerda abandonou os seus objectivos clássicos: propriedade pública do solo urbanizável e urbano, prioridade às habitações para arrendamento (que não deveria ultrapassar dez ou 20 por cento dos rendimentos familiares), a continuidade e a mistura dos tecidos urbanos, etc. E quando se propõem medidas correctoras, como a recente legislação sobre as mais-valias urbanas, são de uma timidez incrível (recuperação por parte do sector público de 15 por cento destas mais-valias! Por que não de 90 ou de 100 por cento?). Por seu lado, os governos conservadores implementaram uma legislação facilitadora do “todo urbanizável” que conseguiu multiplicar a urbanização extensiva e disparar o preço das habitações e do solo, cuja repercussão sobre o da habitação passou de 30 para 50 por cento. Não encontramos hoje, nos governos democráticos, um entendimento claro sobre “o direito à habitação” e menos ainda sobre “o direito à cidade” quando se trata da cidade futura, a que está a ser fabricada nas periferias.


6. As infra-estruturas e a mobilidade dos cidadãos


     O actual debate sobre as infra-estruturas parece centrar-se numa disputa sobre o nível institucional a que corresponde a principal responsabilidade de gestão. Sem dúvida é um tema importante e parece provável que uma gestão de proximidade das redes ferroviária e viária, dos portos e dos aeroportos seria indubitavelmente mais eficaz se estivesse mais submetida ao controlo social. Mas direita e esquerda coincidem nas mesmas propostas “incrementalistas”, apesar de, em muitos casos, pressuporem custos sociais e ambientais dificilmente sustentáveis. Pareceria lógico que o ponto de partida fosse o reconhecimento do “direito à mobilidade”, hoje fundamental, que deve considerar-se um direito universal, para todos, para cada dia e a todos os níveis. Em consequência, deveria privilegiar-se a mobilidade mais maciça e mais quotidiana, como são as redes de transportes suburbanos, o que não acontece agora. As infra-estruturas são o principal motor da urbanização e seria lógico favorecer crescimentos apoiados na compacticidade e densidade dos tecidos urbanos. Não há uma cultura política democrática que assuma na prática nem o direito à mobilidade nem o bom uso das infra-estruturas para fazer cidade.


7. A segurança dos cidadãos


     De novo encontramo-nos diante de discursos e práticas que se caracterizam pelas ambivalências, contradições e, finalmente, pela submissão a valores e comportamentos mais conservadores e eliminadores, que incitam a tomadas de posição mais primárias. A criação de ambientes seguros é um direito fundamental para o conjunto da população e é obrigação das políticas públicas garanti-lo. Especialmente para as comunidades que, por razões diversas, são mais vulneráveis, sofrem discriminações e necessitam protecção. Mas a insegurança procede de muitas causas: desocupação ou precariedade do emprego, envolvente urbana inóspita, pobreza, presença de comunidades culturalmente distintas e entendidas como potencialmente “perigosas”, debilidade do tecido social, etc. Por outro lado, vivemos numa época em que a política do “medo” se converteu num instrumento manipulador da opinião pública internacional por parte dos governantes mais reaccionários dos EUA. Lamentavelmente, esta política contaminou bastantes governantes democráticos europeus, que em muitos casos assumiram o discurso securitário e a prática da repressão preventiva, muitas vezes contra as comunidades mais vulneráveis. É sintomático que duas das cidades que serviram nas últimas décadas de exemplo de gestão democrática, Bolonha e Barcelona, tenham aprovado normativas baseadas em princípios tão discutíveis como a criminalização de comunidades sociais e a prática da repressão mais preventiva. O exemplo mais próximo é o dos Estatutos para a convivência, aprovados pelo Município de Barcelona, pelos quais se criminaliza vendedores ambulantes, prostitutas, mendigos, limpadores de vidros, sem-abrigo, etc. e se impõem sanções tão exageradas como inaplicáveis5. Tudo em nome do “cidadão normal” que tem direito “a não ver aquilo que o incomoda”. Entendamo-nos: não se trata de defender uma política permissiva, bem pelo contrário. Cremos que a polícia de proximidade, a justiça local rápida, a sanção imediata dos comportamentos incivilizados, etc. fazem parte de políticas públicas que devem ser próprias da democracia, pois afectam a grande maioria dos cidadãos. Mas o ponto de partida deve ser a consideração de todos os cidadãos por igual, a protecção dos mais fracos e a construção de espaços de convivência que promovam o conhecimento mútuo, a cooperação entre os cidadãos e a solidariedade com os mais fracos ou discriminados. Curiosamente, os “estatutos” citados, se bem que de início proclamem a sua intenção de sancionar os comportamentos racistas ou xenófobos, de imediato se esquecem de concretizar esta boa intenção no seu articulado. O direito à segurança, hoje, não parece que tenha sido para já elaborado e assumido pelos governantes democráticos enquanto aplicação às novas realidades dos princípios próprios do liberalismo progressista, do pensamento social cristão e dos valores e práticas das esquerdas. Pelo contrário, parecem impor os temores e as reacções autoritárias das ideologias mais conservadoras. Ideologias e práticas que criminalizam os pobres, os jovens sem horizontes dos sectores populares e os imigrantes.


8. A Escola pública e a religião


     A Escola pública, obrigatória e laica, foi, historicamente, uma das grandes conquistas da democracia. Vejamos os seus três principais objectivos: garantir uma formação básica para todos os cidadãos como meio de promover um desenvolvimento económico e social mais justo e eficaz; criar um mecanismo de mobilidade social ascendente ao alcance dos sectores populares e das comunidades que sofrem discriminação e exclusão; e, por último, formar cidadãos para a democracia, a tolerância e a racionalidade, mediante uma educação que não imponha crenças que pretendam monopolizar a verdade e que signifiquem menosprezo por outras de sinal contrário. Actualmente, a combinação entre o afã aplicado na distinção de sectores sociais acomodados, por um lado, e o acesso ao sistema educativo dos sectores populares, incluídos os procedentes da imigração, por outro, provocou uma forte fractura no sistema educativo. Para isso contribuiu o comportamento de uma parte significativa da Igreja católica, defensora de privilégios herdados do passado e convertida em grande empresa que fez do ensino um negócio e uma fonte de poder e de influência. Os governos democráticos, inclusive de esquerda, demonstraram muitas vezes grande debilidade frente às reacções destes sectores, que utilizaram a religião para defender os seus privilégios. Assim, admitiu-se, de facto, que as escolas “concertadas”*, ou seja, subvencionadas a 100 por cento, pratiquem a discriminação (por exemplo, no que respeita à população imigrante) e que incluam nas suas disciplinas obrigatórias a religião, que, em alguns casos, voltou inclusivamente às escolas públicas. Esta debilidade trouxe consigo um retrocesso progressivo do laicismo e especializou a escola pública como escola própria dos sectores mais excluídos, pelo que, em vez de servir de rampa para a ascensão social, contribui para reforçar a marginalização social. O resultado é que nenhum dos três objectivos da escola pública, obrigatória e laica se cumprem.


9. Os serviços públicos urbanos: as multinacionais contra a democracia


     Todo o mundo sabe e é profecia: existem relações obscuras, significativos nichos de corrupção pública e posições privilegiadas de grandes empresas de serviços, geradoras de enormes benefícios privados, que pesam sobre os contribuintes e sobre a qualidade das prestações. É indiscutível que um dos principais avanços promovidos pela esquerda e pelo seu projecto, hoje já histórico, do “Estado Providência” foi o estabelecimento de um sistema de serviços públicos “universais” ou de interesse geral. Este sistema está hoje afectado por um processo de deterioração crescente devido principalmente a dois factores. Primeiro, a relativa inadequação da oferta às novas realidades urbanas caracterizadas pela difusão do habitat e pela maior escala da segregação social. As populações menos solventes estarão pior servidas tanto em matéria de transportes públicos como de equipamentos sócio-culturais e também no acesso às actuais tecnologias de informação e comunicação (a “fractura digital”). E segundo: as situações de monopólio, garantem, de facto, uma impunidade que permite que os défices de investimento e de manutenção fragilizem as prestações de serviços, como ocorre agora com a água e a energia. E não deixa de ser um escandaloso paradoxo que estas mesmas empresas de serviços utilizem as políticas públicas de cooperação para se instalarem em países menos desenvolvidos, onde forçam contratos leoninos e transferem tecnologias custosas e pouco adequadas.
     A cultura de esquerda deveria recuperar algo tão elementar, e que constitui parte da sua razão de ser, como é a propriedade colectiva de bens básicos da humanidade, pelo menos dos quatro bens clássicos: a água, o ar, a terra e o fogo (a energia em termos actuais). Não é possível que estes bens sejam objecto de apropriação privada e, por conseguinte, de lucro para uns e de exclusão para outros. A gestão da água é privada e uma parte significativa da população do mundo não tem água potável por não poder pagá-la. Compra-se o direito de contaminar e os países dominantes contaminam assim as populações mais pobres. A propriedade privada do solo é um dos principais factores geradores de marginalização social, de especulação privada e de corrupção pública. E as maiores fortunas geram-se nos sectores energéticos e distribuem-se segundo os níveis de solvência das demandas, com o paradoxo de que em muitos casos as populações e os territórios produtores de fontes energéticas não poderem aceder às mesmas. 
     É surpreendente e vergonhoso que os governos democráticos defendam no mundo as “suas empresas multinacionais” (financeiras, de serviços urbanos, energéticas, de telecomunicações, etc.) como representantes do interesse nacional pelo facto de terem origem no seu país. É assim que actuam, agora, governos, partidos políticos e meios de comunicação relativamente às novas políticas que emergem na América Latina.


10. A imigração


     O discurso e a prática dos governos democráticos, tanto à escala local como nacional, são, neste caso, de uma ambiguidade que vai para além da inevitável consideração dos limites que tanto os marcos económico e legal (nacionais e europeus) como o estado da opinião pública impõem a uma política da imigração. Pratica-se a contradição ou o duplo discurso entre os princípios que se proclamam e as normas que se impõem. Se não, vejam-se os regimes jurídicos dos estrangeiros em Espanha. Embora na exposição de motivos (que não têm eficácia jurídica directa) se proclamem normalmente as boas intenções – como reconhecer e proteger os direitos dos imigrantes e favorecer a sua integração em todos os aspectos –, os textos articulados são sempre um compêndio de limitações ao exercício de direitos básicos. Embora se façam declarações negando a regularização dos “ilegais”, todos sabemos que é inevitável que a população estabelecida no país, que trabalha e paga impostos, acabe sendo regularizada, o que deveria fazer-se periodicamente. Omitem-se os injustos custos sociais que este exército de reserva de mão-de-obra deve assumir, o qual trabalha precariamente enquanto espera que ao cabo de uns anos seja regularizada. Colocam-se entraves a direitos tão básicos como o do reagrupamento familiar ou o do exercício dos direitos sindicais. Não é possível praticar continuamente uma política de portas abertas para todos, mas a cultura democrática, humanista e universalista, inclui o direito dos habitantes do mundo a ter um projecto de vida próprio e, portanto, a política deve estabelecer vias regulares e dignas para receber uma população que também chega aos nossos países desenvolvidos. Faltam princípios claros sobre os direitos dos imigrantes. O direito à dignidade, ao reconhecimento da sua identidade, o tratamento baseado na “acção positiva” para facilitar o seu processo integrador, as sanções para os maus procedimentos provenientes quer da sociedade civil quer dos funcionários públicos, a difusão dos seus valores e das suas contribuições para o país a que chegam. Por exemplo: as estatísticas dizem-nos que o nível médio educativo dos imigrantes é superior ao dos espanhóis, e que a taxa de delinquência (se excluímos a irregularidade legal, que tem carácter administrativo) é igual à do resto da população. A questão fundamental à luz duma cultura democrática é reconhecer os imigrantes instalados no país de acolhimento como cidadãos de pleno direito. Não há argumentos admissíveis que possam negar este princípio. É um teste iniludível para as democracias urbanas actuais. A população de origem não comunitária com residência legal deve ser sujeito dos mesmos direitos que os nacionais, incluindo todos os direitos políticos.

 

11. Sobre a reconstrução de uma cultura democrática. Três reflexões breves e gerais

     Neste breve e apressado artigo não pretendemos esgotar a análise de todos os novos desafios que a democracia deve afrontar. Somente indicamos alguns temas relacionados com o espaço urbano, o território de proximidade, o marco de vida comum dos cidadãos.
     A ideia central desta nota é a de que o pensamento e a política das actuais democracias, se quiserem ser fiéis aos seus objectivos históricos de liberdade e igualdade, à sua vocação universalista e de estar ao lado dos que são ao mesmo tempo vítimas necessárias e resistentes potenciais dum sistema baseado no esbanjamento global e no lucro pessoal, devem reconstruir ou desenvolver as suas bases teóricas e os seus valores morais. Isto é, repensar a cidadania.
     Uma linha de trabalho que promete ser produtiva é a de repensar os “direitos de cidadania” correspondentes à nossa época6. Um deles pode ser o “direito à cidade”, que integra os direitos que citámos anteriormente: à habitação, ao espaço público, ao aceso à centralidade, à mobilidade, à visibilidade no tecido urbano, à identidade do lugar, etc. Noutras dimensões da vida social, económica e política é necessário reelaborar e especificar “novos direitos” que se distinguirão pela sua maior complexidade face aos tradicionais, que serviram de devisa às revoluções democráticas e às reformas sociais da velha sociedade industrial. Como por exemplo: o reconhecimento de todos os direitos políticos aos residentes legais numa cidade ou região (isto é, superar o vínculo limitador entre nacionalidade e cidadania); a formação contínua ou entender a educação não como limitada a um período da vida; o salário de cidadania ou o rendimento básico universal como complemento do direito ao trabalho, etc.
     Optámos por conceptualizar estes direitos como de cidadãos e não como de “humanos” por considerar que constituem parte do estatuto de cidadania. Trata-se de reconhecer a pessoa como sujeito de direitos e deveres que a tornam livre no território em que escolheu viver e igual a todos os que convivem nesse território.
     Uma segunda linha de reflexão é a de repensar o “projecto de sociedade” a que se aspira como um horizonte ideal mais do que como um modelo armado (tão especulativo como perigoso). O projecto de sociedade não se inventa, nasce de três fontes: a memória histórica democrática, a crítica teórica e prática da sociedade existente e as aspirações e objectivos que emergem dos conflitos sociais em que se expressam valores de liberdade e de igualdade. O fracasso e a justa rejeição dos modelos de tipo “soviético” e o esgotamento do “Estado Providência” tradicional provocaram um certo receio de pensar que “outro mundo é possível”. Todavia, tanto os ideais históricos do Iluminismo, do liberalismo democrático, do cristianismo social e do socialismo e as práticas dos movimentos dos trabalhadores e em defesa da democracia, assim como as realizações do “welfare state” não só representam um património positivo, como também constituem uma base para repensar o futuro. Causa vertigem o vazio cultural da política actual, que não quer olhar para trás, nem se atreve a imaginar para diante. Evita-se a reflexão crítica sobre os modelos económicos vigentes, esbanjadores e insustentáveis, excluidores e violentos, que caracterizam o nosso modo de vida.
     E, finalmente, uma terceira linha de trabalho requer vincular ao pensamento teórico e à prática política o “local” e o “global”. Quando viajamos pela América Latina ou por África, forçosamente devemos pensar em termos “globais”. Não só pela inevitável comparação entre as situações de que tomamos conhecimento e as que vivemos no nosso país. Mas é sobretudo a imediata compreensão de que as situações que ferem a nossa sensibilidade e a nossa razão são, em grande parte, devidas às relações passadas e presentes com o nosso mundo. É-nos ofensivo regressar e ler as declarações dos políticos e dos meios de comunicação defendendo, a ocidente, os seus sistemas e as suas empresas, e denunciando, sob o nome supostamente infamante de “populismo”, qualquer crítica ou ameaça aos interesses neocolonialistas de governos e empresas. Se contemplamos as “nossas democracias” à luz do mundo africano ou latino-americano elas surgem-nos frequentemente como ignorantes, não solidárias, arrogantes e injustas. Recuperar o “universalismo” no marco da globalização é uma matéria pendente da esquerda ocidental.


12. À maneira de epílogo: retorno à cidade e elogio do acaso


     Não creio que uma nova cultura política possa ser gerada principalmente nas instituições de governo ou se possa construir nos laboratórios de investigação e nos seminários académicos. Nos primeiros gere-se ou pensa-se em função das eleições. E no mundo académico a criatividade não é a virtude mais apreciada. Restam-nos os movimentos políticos alternativos (globais), como os que criticam a globalização do mundo real em nome de outro mundo possível, e os movimentos sociais e culturais de resistência (locais), que defendem identidades ou interesses colectivos legítimos mas limitados. Apenas nos resta esperar que entre a política institucional, as áreas de investigação e de debate intelectual e os movimentos globais e locais se gerem intercâmbios e transferências capazes de estabelecer as bases de uma cultura política pragmática na sua acção mas radical nos seus objectivos.
     Como não se podem inventar as pontes entre estes actores tão diferentes e tão distanciados só me ocorre confiar no acaso. E na cidade. Na “serendipity” da cidade. Se não conhecem a origem desta palavra, passo a explicá-la7. “Inventou-a” o escritor inglês Horace Walpole a partir de um relato, The Three Princes of Serendip [As aventuras dos três príncipes de Serendip], país que depois se chamou Ceilão e actualmente se designa Sri Lanka. Os três príncipes, na sua viajem, descobrem, sempre sem a procurar e por intervenção do acaso, uma multidão de factos curiosos, grandes novidades para eles. A “serendipity” pode entender-se como encontrar o que não se procura (como o Viagra resultou de investigações sobre a hipertensão e a Internet de investigações do Ministério de Defensa dos EUA). É o resultado do acaso que estabelece ligações imprevistas entre pessoas ou o fruto de encontros casuais entre pessoas e factos. A “serendipity” obviamente supõe uma predisposição para observar, aprender, relacionar. E para que o acaso actue é preciso que o meio em que a “serendipity” se possadar seja denso e diverso, que gira múltiplos contactos imprevistos, que os sujeitos percebam factos que não fazem parte dos seus trabalhos nem da sua quotidianidade, que em qualquer esquina possa aparecer a surpresa ou a aventura (como resume a citação de Breton que aparece ao início deste texto).8
     A cidade, real e imaginária, a cidade compacta e heterogénea caracteriza-se pelo nível da população e pela velocidade das conexões que possibilita ou pela velocidade a que multiplica as interacções entre actores muito diversos. O perigo pode residir num excesso de planificação racionalista, de ordenamento funcional, de programação das conexões, de previsibilidade dos comportamentos. Sennett, numa das suas primeiras obras, já alertava contra os efeitos perversos do urbanismo funcionalista e reclamava uma cidade que fosse lugar de encontros múltiplos entre indivíduos diferentes9. E o director de urbanismo da City de Londres afirmava, num encontro internacional, que os pubs eram os lugares mais idóneos para a inovação económica e cultural, pois os encontros informais eram muitas vezes os mais produtivos.10
     Não propomos que os actores pensantes se distribuam pelos cafés e subam e desçam dos eléctricos. Mas sim que façamos do urbanismo uma questão “política”. As dinâmicas actuais tendem a atomizar a cidade, a segregar grupos sociais e actividades, a reduzir os intercâmbios entre cidadãos, substituídos por relações entre serviços e usuários, equipamentos e clientes. Como diz Ascher “o urbanismo deve produzir lugares, momentos e situações favoráveis à serendipity”.
     A cidade é o lugar da história, da inovação cultural e política; é o ambiente em que a esquerda se pode recriar e desenvolver. Hoje, há tendências desagregadoras da cidade e da cidadania. Eis o duplo desafio que a democracia enfrenta: a de reinventar a cidade e a de se reinventar a si mesma na cidade. |

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1 Jordi Borja. La ciudad conquistada. Madrid : Alianza Editorial, 2003.
2 Lucio Caracciolo (dir.). La democrazia in Europa: Diálogo entre Ralf Dahrendorf, François Furet y Bronislaw Geremek. Roma : Laterza, 1992.
3  José Maria Ridao. “La izquierda sin crisis.” El País (25 Nov. 2007).
4 Jean Marie Delarue. Banlieues en difficulté, la rélégation. Paris : Syrus/Alternative, 1991.
5 Jordi Borja. Inseguretat ciutadana a la societat de risc. Revista Catalana de Seguretat Pública, nº 16, 2006. Versão castelhana da Revista La Factoría, nº 32. [Em linha]. Disponível em www.revistalafactoria.eu
* Por “Escuelas Concertadas” designa-se, em Espanha, as instituições de ensino privado que são co-financiadas pelo Estado. (N.T.)
6 Jordi Borja. Los derechos ciudadanos. Documentos, Fundación Alternativas, Estudios, nº 51 (2004) (inclui uma ampla bibliografia).
7 François Ascher. La ville c’est les autres. Paris : CCI/Centre Georges Pompidou, 2007. Catálogo Commerativo; ASCHER, François. Examen clinique, journal d’un hypermoderne. La Tour d’Aigues : L’Aube, 2007.
8 André Breton. Nadja. Paris : Gallimard, 1964.
9 Richard Sennett. El declive del hombre publico. (Historia, Ciencia, Sociedad). Madrid : Ediciones Península, 1975. Tít. orig. The uses of disorder: Personal Identity and City Life.
10 A afirmação do director de urbanismo do Distrito da City de Londres refere-se a uma intervenção oral no Seminario de Grandes Ciudades, Centro Cultural San Martín. Posteriormente publicou-se um volume com todas as intervenções a cargo do Governo da cidade de Buenos Aires (1997).



 


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